O senhor Silva está preocupado com o (seu) futuro, teme que as (suas) duas pensões - uma de 1.300 euros mensais e outra não sabe exactamente de que valor - não cheguem para as despesas e lamenta-se dos quase 40 anos de descontos para a Segurança Social que, deixa perceber, não são justamente reflectidos no valor da reforma. 'Isto' é o País, mas este senhor Silva é Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República.
O senhor Silva, o outro, o que vive de facto sem saber se o que tem de pensão chega para as despesas, poderia lamentar-se, como, de resto, o faz sempre que é apanhado numa paragem de autocarro por um qualquer directo de uma televisão no dia em que o preço do bilhete da Carris aumenta, outra vez. O senhor Silva, o Presidente da República, não tem esse direito.
Diz o senhor Silva, o Presidente: "Eu descontei quase 40 anos uma parte do salário para a Caixa Geral de Aposentações (CGA) como professor universitário, irei receber 1.300 euros por mês, não sei se ouviu bem, 1.300 euros por mês. Tudo somado, do Banco de Portugal (BdP) e CGA, quase de certeza não vai chegar para pagar as minhas despesas". O senhor Silva, o Presidente, não poderia ter celebrado um ano de mandato em Belém da pior forma, porque, perante as câmaras, incomodado por certo com a ideia de que já deveria ter abdicado, por sua iniciativa, dos subsídios de pensão do Banco de Portugal, não resistiu a ser o senhor Silva, o outro. Numa matéria que se tem prestado a demagogia, o senhor Silva que deveria ter falado era o Presidente.
O senhor Silva, o outro, não sabe se ganha para as despesas, mas sabe bem quanto ganha, só não sabe é se os encargos vão aumentar de um dia para o outro, ou melhor, desconfia que sim. Impressiona, por isso, que o senhor Silva, o Presidente, não saiba quanto tem de pensão do Banco de Portugal, mas não se escuse a mencionar, e a perguntar, para que não restem dúvidas, se o ouvimos bem. 1.300 euros por mês, brutos, presume-se.
O senhor Silva, que tem de promulgar decretos, influenciar com o poder da palavra, que até pode mandar governos abaixo, não se lembra bem se a pensão do Banco de Portugal é de quatro, cinco ou seis mil euros. Ao todo, em 2009, 140 mil euros brutos, de acordo com a declaração do Tribunal Constitucional. Se estivesse aflito como o outro senhor Silva, seguramente saberia, ao euro, o valor da sua pensão. Mas o senhor Silva, Presidente, deve saber mais do que o que diz, porque, afinal, trocou o salário de Presidente pelas duas pensões.
O senhor Silva, o Presidente, é justo reconhecê-lo, tem alertado para o risco de empurrarmos os reformados para uma nova pobreza, mais dura e crua, em solidão. E tem deixado críticas à possibilidade de os cortes atingirem reformados que descontaram 'uma vida' e que não devem ser privados de pensões que, eventualmente, os impedirão de pagar as despesas com saúde. Mas não pode é colocar-se, a si próprio, nessa posição, porque é Presidente, mas, sobretudo, porque é demagogia e populismo. E, além disso, porque, ironicamente, o problema do País é precisamente esse, o de ter rendimentos que não chegam para as despesas. É por isso que ouvimos, e bem, que vivemos há anos acima das nossas possibilidades e temos de gastar menos, de ajustar.
Resumir um ano de mandato a um episódio, mesmo um como este, seria redutor e injusto, mas Cavaco Silva talvez não tenha avaliado como um minuto de televisão mina e põe em causa 364 dias, 23horas e 59 minutos de presidência, a sua autoridade moral. Como os casos das nomeações para Pedro Passos Coelho.
Os portugueses não querem Homens com super-poderes, querem Homens com uma super-moralidade. À prova de qualquer tentação.
PS: O primeiro ano deste segundo mandato presidencial de Cavaco Silva não foi o melhor, não foi o pior, foi o possível. Num ano historicamente difícil, em que passámos a ser um protectorado das instituições internacionais, que nos vão deixando pensar que temos mais independência do que aquela que temos, Cavaco Silva conseguiu descolar do Governo de Pedro Passos Coelho, sem cair na tentação de ser a oposição, exerceu uma influência discreta mas activa em dossiês importantes como o mais recente, da concertação social, e manteve em aberto a sua autonomia política para poder intervir se o pior, da crise económica e financeira europeia, chegar.